Ciganos resistem ao tempo, à pobreza, ao preconceito e preservam tradições no Sertão
Grupo com cerca de 200 pessoas fixou moradia no município de Carneiros, após uma vida nômade por diversos estados do Nordeste
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Por Minuto Sertão. 
A vida de cigano é uma vida corriqueira, uma vida desalojada. A 
afirmação é de seu Francisco Ferraz, o patriarca de um grupo de ciganos 
que há nove anos fixou moradia no município de Carneiros, no Sertão 
alagoano, após uma vida de migração, pobreza e preconceito por várias 
cidades do Nordeste.
Seu Francisco e a mulher, dona Maria das Graças, são filhos e netos 
de ciganos, por isso, não sabem o que é morar numa casa de alvenaria, 
ter vizinhos nem endereço fixo. Por essa mesma razão, nunca frequentaram
 a escola e são analfabetos.
Não sabem a idade – apesar de aparentarem ter mais de 80 anos – nem 
quantos filhos tiveram. “São mais de 10 aqui com a gente”, palpita seu 
Francisco sobre a quantidade de filhos que vivem com eles no “rancho” 
formado por barracas de lona instaladas num terreno na zona urbana de 
Carneiros.
Somando os netos, bisnetos, genros e noras, o grupo chega a cerca de 
200 pessoas, todas parentes entre si e com algum grau de parentesco com o
 seu Francisco e a dona Maria, que são os líderes do grupo e estão 
casados, segundo eles, há 50 anos.
Nascidos na Bahia, seu Francisco e dona Maria viram a família crescer
 em cada parada, em cada estado. Entre eles, há alagoanos, sergipanos, 
baianos e pernambucanos.
Nessa vida “corriqueira” e “desalojada”, os ciganos também não sabem o
 que é a solidão, pois optam por morar todos juntos. Assim, vão mantendo
 suas tradições e encarando unidos o olhar de reprovação e preconceito 
de uma sociedade que, na maioria das vezes, não sabe conviver com as 
diferenças.
Porém, um dos motivos que levou o grupo a fixar moradia no município 
de Carneiros, segundo seu Francisco, é que lá “o povo é bom, não 
persegue”. O outro motivo para o fim do nomadismo – pelo menos por 
enquanto – é o programa Bolsa Família.
Apesar de se sentir feliz e acreditar na vontade de Deus e de 
“pessoas particulares” para conseguir melhorias, seu Francisco sente 
falta do passado porque diz que “antigamente a gente tinha mais 
liberdade”. Liberdade de quê? “De andar, de negociar, de fazer seus 
‘pranos’”. Nessas andanças pelo Sertão, seu Francisco conta que “topa 
bom aqui, ruim ali” e também que já passou muita fome. “Toda família de 
cigano já passou fome”, afirmou. “Mas ainda ‘tamo’ feliz, que ‘tamo’ 
perto dos homens”, observou, sobre viver na mesma cidade há cerca de 
nove anos.
O cigano foi uma nação desprezada
Seu Francisco conheceu o mundo, mas o mundo não quis conhecê-lo. Essa
 falta de conhecimento sobre o modo de vida e as tradições ciganas estão
 nas raízes do preconceito e da invisibilidade que eles sempre tiveram 
não só perante a população, mas, ainda mais grave, perante os 
governantes.
Por isso, o patriarca disse que “o cigano foi uma nação desprezada”. 
“O governo podia ter ajudado. O que nós temos é dado por Deus e pelos 
homens, mais do que pelo governo. O cigano é desatendido, tem o 
atendimento de Jesus Cristo e de uma pessoa particular que queira 
ajudar”, salienta o patriarca do grupo. “Nós somos ‘eleitor’, ajuda os 
prefeitos, os deputados, e eles como não olham pra gente?”, questiona, 
com lucidez, seu Francisco.
A vida mudou um pouco há alguns anos após a inclusão de alguns 
membros do grupo no programa Bolsa Família e de seu Francisco e da 
esposa no programa de Benefício de Prestação Continuada (BPC), por meio 
do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS).
Porém, de acordo com o cigano Batista Ferraz de Alencar, de 31 anos, a
 vida das cerca de 200 pessoas do grupo continua difícil. Segundo ele, 
as principais atividades para gerar renda são “uma lida de mão, alguma 
atividade como diarista nas roças de outras pessoas e os negócios de 
trocas ou compra e venda de aparelho de som, motos e relógios”. Nenhum 
deles tem emprego fixo.
A “lida” ou leitura de mão, como citou Batista, é realizada pelas 
mulheres do grupo, quando andam de porta em porta na cidade de Carneiros
 e em cidades vizinhas, bem como pelas feiras de rua, oferecendo esse 
serviço.
“Os meios de vida nos outros governos eram mais difíceis. Hoje em dia
 a gente tem o Bolsa Família que dá ‘pra’ ir merendando, se habituar e 
ficar num lugar só. No passado a gente não ficava num lugar só porque 
não tinha um meio de vida”, explicou Batista Ferraz. Antes de chegar a 
Carneiros, o grupo passou uma temporada no município de Dois Riachos, 
também no Sertão alagoano.
Por meio do município de Carneiros, as crianças e jovens do grupo 
estudam nas escolas da rede municipal, todos têm acesso à rede de saúde 
usada pelos demais moradores da cidade, recebem a visita de um agente de
 saúde, frequentam médicos, dentistas, realizam exames e recebem 
remédios.
“A gente dá a assistência que a gente pode”, citou a secretária 
municipal de Assistência Social, Margarida Nobre. Segundo ela, a 
Prefeitura de Carneiros tem um projeto para construção de 40 casas 
populares que, quando forem construídas, serão doadas aos ciganos. 
Porém, o projeto ainda aguarda a liberação de recursos pelo governo 
federal.
Por outro lado, de acordo com a secretária e com os próprios ciganos,
 ainda é muito marcante a ausência do Estado e do governo federal com 
ações de promoção e valorização do grupo, geração de oportunidades de 
trabalho, renda, capacitação ou defesa de seus valores e princípios 
culturais. É por essa razão que o líder do grupo, seu Francisco, afirmou
 que “o governo nunca fez parte do cigano”.
Estado não tem ações sociais e culturais voltadas para os ciganos
A reportagem do Minuto Sertão manteve contato com 
três Secretarias de Estado que trabalham com as áreas social e cultural 
para saber se existem ações em execução voltadas especificamente para os
 grupos de ciganos. 
A Secretaria de Assistência e do Desenvolvimento Social (Seades) 
informou, por meio de sua assessoria de comunicação, que não possui 
nenhuma ação em andamento ou executada recentemente para os povos 
ciganos, mas ressaltou que trabalha para ampliar o cadastro da população
 em geral junto ao Cadastro Único (Cadúnico), o que permite o acesso a 
diversos programas e benefícios sociais. A assessoria informou ainda que
 a Seades é uma secretaria-meio, ou seja, de articulação, e que tem 
realizado um trabalho mais próximo de outras minorias étnicas, como 
indígenas e quilombolas.
Já a Secretaria de Estado da Cultura (Secult) informou, também por 
meio de sua assessoria, que não possui nenhum projeto voltado 
especificamente para os grupos ciganos. De acordo com a nota enviada 
pela assessoria, a Secult, através da Superintendência de Identidade e 
Diversidade Cultural, trabalha em projetos que atendam aos vários 
segmentos e manifestações tradicionais.
“A nova gestão está realizando um mapeamento para um levantamento 
regional de segmentos culturais. A Secult lançou o programa ‘Fomento e 
Incentivo à Cultura em Alagoas (Fica)’, que tem como objetivo 
democratizar o acesso a recursos e investimentos, estimular a produção 
cultural alagoana e valorizar ações e projetos que resgatem e fomentem 
as diversas manifestações populares”, diz a nota da pasta da Cultura.
Outra secretaria procurada pela reportagem foi a da Mulher e Direitos
 Humanos. De acordo com a superintendente de Direitos Humanos da pasta, 
Ana Omena, um cadastramento dos grupos de ciganos será realizado para, a
 partir daí, identificar as demandas. Segundo ela, a secretaria tem 
total interesse em conhecer melhor e em anteder às necessidades desses 
povos, por meio de articulações.
Porém, segundo ela, os próprios representantes dos ciganos não têm 
demonstrado interesse em participar de reuniões e eventos propostos pelo
 governo. “A secretaria tem total interesse em discutir as demandas 
desses grupos, inclusive estamos com uma viagem marcada para conhecer o 
acampamento que existe lá em Carneiros”, ressaltou a superintendente.
Para o presidente da Comissão de Defesa das Minorias Étnicas e 
Sociais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-AL), advogado Alberto 
Jorge Ferreira, o governo precisa formalizar e executar uma política 
pública específica para os ciganos. “A filosofia de vida desses povos é 
diferente, por isso, é preciso mudar a filosofia de trabalho. Os poderes
 públicos estadual, municipais e federal precisam chegar junto desses 
grupos”, defendeu.
Segundo ele, deveriam existir políticas públicas para ciganos assim 
como existem para negros e indígenas, por exemplo. “As políticas 
públicas devem também salvaguardar a cultura dos povos ciganos”, apontou
 o advogado. Ele também esclareceu que, enquanto presidente da Comissão 
de Defesa das Minorias Étnicas e Sociais, nunca recebeu nenhum pedido, 
queixa ou intervenção das comunidades ciganas.
Falta de mobilização política é entrave na relação com o governo
Estudante de Mestrado da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) sobre
 as relações espaciais e familiares dos ciganos que vivem em Carneiros, a
 socióloga Leila Samira Portela, que também é especialista em 
Antropologia, acredita que a falta de mobilização política dos ciganos 
atrapalha na negociação de suas demandas com os governos.
Segundo ela, não só em Alagoas, mas também fora do estado, os ciganos
 são vítimas de relações locais, ainda personalistas, com os prefeitos e
 vereadores dos municípios onde vivem. “Afinal, hoje os ciganos são 
eleitores. A visibilidade dos governos para as pautas e reivindicações 
ciganas é bastante recente, e a falta de mobilização política nesse 
sentido também atrapalha bastante”, comentou Leila Portela.
“Só esse ano o governo da Paraíba, por exemplo, que é o estado com a 
maior população cigana do país, está promovendo um encontro regional com
 essas populações. Então, a luta desses grupos está apenas começando e o
 processo será grande e cheio de altos e baixos”, avalia a socióloga.
Para ela, por não estarem organizados politicamente como os 
quilombolas e os indígenas, ainda não há uma unidade entre as lideranças
 ciganas, fazendo com que as ações em conjunto sejam bastante difíceis. 
“A luta destes grupos em busca de direitos, embora incipiente, tem 
caminhado”, analisa a pesquisadora.
Por outro lado, segundo ela, a inclusão recente dos ciganos nos 
programas sociais do governo, como o Bolsa Família, é muito importante 
para a fixação e também para a dignidade desse povo. “Esses programas 
foram primordiais também para a saúde de mulheres e crianças, sua 
frequência na escola, etc. As mulheres ciganas não podem trabalhar e, de
 acordo com a cultura, a única forma de renda dessas mulheres era ler a 
mão nas ruas ou pedir alimentos de casa em casa”, detalhou.
“Muita gente reclama que elas são insistentes, isso se dá porque essa
 era sua única fonte de renda, a possibilidade de levar algum dinheiro 
para casa. Com esses programas do governo, esse quadro mudou, o que 
acabou tendo um impacto bastante positivo na vida dessas mulheres e das 
crianças”, ponderou Leila Portela.
Leis garantem dignidade para ciganos, mas realidade está longe da adequada
O colchão e os cobertores ficam no chão de terra batida, o fogo de 
carvão está logo ali ao lado, o pote que acumula a água de beber também.
 Numa rústica estrutura de madeira, ficam algumas panelas e uma bacia 
com água que serve para lavar os pratos. A barraca de lona não deve ter 
mais que sete ou oito metros quadrados e seu interior guarda algumas 
caixas com pertences e é decorado por imagens de santos e santas do 
catolicismo.
Quente no verão e pouco confortável no inverno, esse é o “lar” de seu
 Francisco e dona Maria das Graças. No entorno, entre as barracas de 
lona dos demais membros do grupo, as mulheres lavam roupa no chão, com 
água de algumas bacias e baldes, e usam estrutura de madeira semelhante a
 uma mesa para lavar os pratos e as panelas. As roupas secam em varais 
improvisados e, apesar de algumas barracas possuírem fogão a gás, eles 
não dispensam o fogo de carvão ou lenha, por ser mais barato.
A água que os ciganos usam é captada em duas torneiras que ficam na 
entrada do terreno, que foi comprado e está em nome do patriarca, seu 
Francisco. No local também há energia elétrica e, por isso, algumas 
barracas têm televisão e antena parabólica. Para as crianças, quando não
 estão na escola, há o jogo de futebol e um balanço amarrado embaixo de 
uma árvore.
De acordo com a pesquisadora Leila Portela, que já visitou o grupo 
cigano de Carneiros para elaborar sua pesquisa no curso de Mestrado da 
Ufal, a Constituição Federal de 1988 significou importantes avanços no 
reconhecimento das minorias étnicas, mesmo não citando expressamente os 
ciganos. “O texto democrático abriu espaço para que eles fossem 
incluídos na classificação de ‘minorias étnicas’ através da Lei 
Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993, o que possibilitou que o 
Ministério Público Federal ampliasse a proteção e defesa dos seus 
interesses, antes exclusivo às comunidades indígenas”, pontuou.
Porém, apenas em 2002, segundo ela, iniciaram-se as discussões sobre a
 etnia cigana, seu acesso aos direitos sociais e a sua inclusão no 
Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). “A partir daí vieram 
algumas conquistas legais, principalmente a partir de 2006 alguns 
dispositivos começaram a ser editados a favor da qualidade de vida e 
respeito a essa minoria étnica”, frisou Leila Portela.
Entre esses dispositivos legais, ela citou: Decreto de 25 de maio de 
2006, que institui o Dia Nacional do Cigano, dia 24 de maio; o decreto 
n° 6.040, de 7 de fevereiro de 2007 que institui a Política Nacional de 
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais; a 
Portaria n° 1.820, de 13 de agosto de 2009, do Ministério da Saúde, que 
dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde, e que afirma, 
no parágrafo único, do art. 4°, o princípio da não discriminação na rede
 de serviços de saúde; a Portaria n° 940, de 28 de abril de 2011, do 
Ministério da Saúde, que regulamenta o sistema do Cartão Nacional de 
Saúde, e que afirma a não obrigatoriedade do fornecimento do endereço de
 domicílio permanente no caso de população cigana nômade que queira se 
cadastrar.
Outros dispositivos legais citados pela pesquisadora e que deveriam 
proteger os ciganos são: o Parecer CNE/CEB nº 14/2011 e Resolução 
CNE/CEB nº 03/2012, que definem Diretrizes do Conselho Nacional de 
Educação para o Atendimento em Educação Escolar para a População em 
Situação de Itinerância; a inclusão no Cadastro Único para Programas 
Sociais do Governo Federal (Cadúnico), de marcador específico para a 
identificação de famílias ciganas; e, mais recentemente, a portaria n° 
10 do Ministério da Educação, de 28 de fevereiro de 2014, que institui 
grupo de trabalho para acompanhar a implementação da Resolução CNE/CEB 
nº 03/2012.
Porém, apesar de todas essas garantias legais, a realidade dos 
ciganos não só de Carneiros, mas de outras localidades, ainda é difícil.
 Eles vivem em condições de miséria, sem acesso a serviços sanitários e 
poucos de seus direitos são respeitados.
Preconceito ainda marca a vida do povo cigano 
Tanto seu Francisco, líder do grupo, quanto o cigano Batista Ferraz 
disseram que já foram vítimas de preconceito simplesmente por serem 
ciganos. “Já sofremos muito, principalmente quando a gente andava assim 
pelo mundo, porque não existia confiança como existe mais um pouco hoje.
 Aqui todo mundo sabe o que a gente faz, aí há aquela confiança. Quando a
 gente andava perambulando, era diferente. Tinha preconceito porque as 
pessoas não conheciam, tinham aquela lenda, aquele mito, não conheciam a
 cultura, não conheciam a gente, aí ninguém vai tirar o direito deles 
também. Aí julgavam a gente, discriminavam, mas hoje em dia nós ‘tamo’ 
no meio da sociedade, a gente vota, estuda, faz tudo”, tentou explicar 
Batista sobre as razões pelas quais foram vítimas de preconceito.
Para a pesquisadora Leila Portela, vivemos em uma sociedade fundada 
na diferença, formada por várias "raças", etnias e culturas, mas não 
somos ensinados a lidar com essa diversidade. “Somos acostumados a 
tentar homogeneizar tudo e temos enorme dificuldade em lidar com as 
diferenças. Grande parte do preconceito contra ciganos vem da 
ignorância, do desconhecimento acerca dos seus costumes e modo de vida. 
Eles são um povo até hoje invisibilizados, tanto que existem ciganos em 
Alagoas e muitos de nós nem sabemos que eles existem”, assinalou.
Para ela, “os ciganos convivem diariamente com o peso de uma 
representação social negativa, com um estereótipo e estigmas que os 
caracterizam como espertos, mentirosos, enganadores, ladrões, 
vagabundos, sem paradeiro, quando não, são vistos de forma romantizada e
 estereotipada, o que não ajuda em nada a situação de racismo e 
discriminação na qual vivem. Eles são constantemente alvo de suspeitas, 
pois são vistos como indivíduos potencialmente perigosos”.
Segundo Leila, de acordo com dados do “Disque 100” da Secretaria de 
Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), a principal 
violação sofrida pela comunidade cigana é a violência psicológica 
(preconceito sofrido nas ruas), seguida da violência institucional 
(falta ou dificuldade na obtenção de serviços de atendimento aos 
cidadãos).
Ela aponta ainda que os ciganos sempre são vistos como "nômades por 
natureza", por exemplo, mas geralmente a sociedade esquece que esse 
nomadismo, na maioria das vezes, foi forçado. “Os ciganos chegavam a 
lugares e não eram aceitos pela população, pela polícia, pelos políticos
 e eram obrigados a se retirar, até hoje é grande a dificuldade deles em
 conseguir pouso (lugar para se fixarem)”, citou.
Presidente do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial 
(Conepir), a jornalista Valdice Gomes afirma que o preconceito no Brasil
 é muito forte e histórico. Segundo ela, está sendo elaborado o Plano 
Estadual de Promoção da Igualdade Racial, cujas ações contemplarão os 
ciganos.
 O conselho pretende garantir a igualdade racial nos aspectos 
econômico e financeiro, além de combater também o racismo institucional e
 a prática da intolerância religiosa, representando ainda um avanço 
educacional, político, social e histórico-cultural.
“O nosso trabalho com os ciganos vai começar por Carneiros”, frisou. 
Porém, segundo ela, os membros do grupo mostram descrédito em ações 
governamentais e, apesar de possuírem assento no Conepir, não estão 
participando das reuniões. De acordo com Valdice, o Conselho existe há 
apenas um ano e meio e foi criado a partir de uma luta da sociedade 
civil. Segundo ela, o Conepir também pretende fazer um levantamento para
 identificar quantos são e onde se localizam os grupos ciganos do 
estado.
Traços culturais marcantes resistem ao tempo e unem o grupo
Alguns têm olhos claros, cabelos alourados, outros são pardos de 
olhos negros. Quando conversam entre si, são poucas as palavras que quem
 não é do grupo consegue entender. Já quando conversam com alguém de 
fora, falam o português num sotaque bem característico, quase uma 
melodia pronunciada ao final de cada frase. Para as mulheres, o 
casamento é arranjado pelos pais desde o nascimento e é feito com um 
membro do próprio grupo, geralmente um primo de primeiro ou segundo 
grau. Os homens, por outro lado, podem se casar com mulheres não-ciganas
 que queiram fazer parte do grupo.
As datas mais comemoradas por eles são as festas juninas e o Ano 
Novo. Todos são praticantes do catolicismo, vão à missa de vez em quando
 e guardam nas barracas de lona imagens de santos, entre eles o Padre 
Cícero. Já as roupas femininas, sempre vestidos ou saias coloridas e 
compostas, distinguem as mulheres ciganas em qualquer lugar onde 
estejam. “Eu acho bonito, as mulheres daqui não se exibem muito, não se 
mostram, o corpo é coberto, não é que nem essas outras mulheres que se 
mostram e ficam quase nuas”, argumentou Batista Ferraz, cigano membro do
 grupo que vive em Carneiros.
Itamara da Silva Oliveira, uma das mulheres do grupo, é filha e neta 
de ciganos, tem 20 anos de idade, e diz gostar das roupas que usa. Ela 
explicou que os tecidos são comprados e as roupas são feitas por 
costureiras ou a mão mesmo.
Para a pesquisadora Leila Portela, que estuda os ciganos de Carneiros
 em seu Mestrado, “as relações com nós (não ciganos) também são 
importantes elementos de definição do que é ser cigano, ou seja, eles 
são o que nós não somos”. Segundo ela, eles fazem parte da etnia Calon e
 entre si falam o idioma conhecido como chib. “Essa linguagem já vem da 
tradição. Quando o cigano nasce, já nasce com essa linguagem”, explicou o
 cigano Batista Ferraz, durante entrevista ao Minuto Sertão.
Ainda de acordo com a pesquisadora, no Brasil existem três etnias de 
povos ciganos: Rom, Sinti e Calon. Os que vivem em Carneiros, segundo 
ela, são marcados por alguns traços culturais específicos, entre eles: 
se identificam como parte do mesmo grupo, que é um grupo familiar; 
possuem uma origem comum, que são o seu Francisco e a dona Maria das 
Graças; têm um passado nômade; possuem parentes que vivem em Feira de 
Santana, na Bahia.
Outra característica apontada por ela é o pertencimento familiar. “O 
pertencimento familiar é muito importante entre os Calon. Uma das provas
 disso é que eles sempre andam em ‘bando’ e muitos não ciganos não 
entendem e sentem medo. Na verdade, para os Calon não existe sentido em 
ser sozinho ou viver sozinho. Um cigano só é cigano se estiver em 
família, por isso que sempre que encontramos ciganos eles estão em 
grupo. Na verdade, estão em família, são irmãos, primos, tios etc.”, 
analisou Leila Portela.
Reinvenção cultural deve manter povos ciganos
Além de Carneiros, existem ciganos em Delmiro Gouveia, Arapiraca, 
União dos Palmares e Maceió, num total de mais de 200 famílias. Em todo o
 Brasil, são cerca de 300 acampamentos de grupos ciganos, entre nômades e
 sedentários.
Quando questionada se acredita na permanência dos povos ciganos e sua
 cultura nas próximas décadas, a pesquisadora Leila Portela citou o 
histórico de resistência deles.
“Eles possuem uma rica cultura e uma longa história de resistências: 
foram escravos na Romênia, perseguidos pelos nazistas (estima-se que 500
 mil ciganos tenham sido assassinados em campos de concentração durante a
 II Guerra, além de todas as outras políticas anticiganas adotadas pelo 
governo nazista), foram alvos de punições, banimentos e constantes 
expulsões dos locais de pouso e das mais refinadas políticas 
persecutórias, diásporas, discriminações e preconceitos fruto de 
representações coletivas, estigmas e imagens negativas”, descreveu.
“Não é à toa que alguns estudiosos afirmam que o maior feito da 
cultura cigana foi ter resistido. Então, o que os ciganos mais têm feito
 durante séculos é justamente isso: resistir. Possuem uma rica cultura e
 está começando a haver um movimento de organização desses grupos para 
reivindicar seus direitos. Além disso, apesar de toda dificuldade, é 
característica das culturas se reinventar, elas não são fixas, se 
transformam e resistem, e os ciganos são a prova disso”, emendou Leila 
Portela.
Na visão dela, mesmo quando o ambiente é hostil e as condições são 
difíceis, os ciganos reinventam suas práticas, outros elementos de 
diferenciação surgem e a cultura se mantém, mesmo que transformada. 
“Eles sobreviveram a períodos difíceis, onde não havia nem seu 
reconhecimento como pessoas, onde não tinham direito nem a um registro 
de nascimento”, concluiu.
Aos ciganos da etnia Calon que vivem em Carneiros, resta manter sua 
cultura viva, o grupo unido e acreditar que a evolução da sociedade para
 o conhecimento faça com que as novas gerações não sofram do mesmo 
preconceito que eles sofreram nem de nenhum outro tipo. Ao mesmo tempo, 
eles aguardam que os governantes os enxerguem como cidadãos possuidores 
dos mesmos direitos, apesar de seus traços culturais peculiares.






















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