Em Água Branca/AL, Comunidade tradicional branca Tingui recebe visita de técnicos da FPI

José Fernando de Oliveira, 65 anos, afirma que Tingui é um povoado tranquilo.

Em Água Branca, pleno Sertão alagoano, um pequeno povoado quase inteiramente de membros de uma mesma família forma uma peculiar comunidade tradicional. Não são indígenas, nem quilombolas. Em Tingui, a comunidade branca que busca suas origens numa suposta ascendência holandesa, os vínculos com a Europa estão sugeridos na tonalidade da pele e dos olhos claros de grande parte dos moradores. Mas, principalmente, no imaginário coletivo local.

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São consideradas tradicionais as comunidades culturalmente diferenciadas que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para a sua reprodução física, cultural, econômica, religiosa e ancestral, utilizando conhecimentos e práticas geradas e transmitidas através das gerações pela tradição, explica o antropólogo do Ministério Público Federal (MPF), Ivan Soares Farias. “Quando identificamos uma comunidade que se enquadra em alguns desses aspectos socioculturais, deve ser considerada como comunidade tradicional, atraindo pra si os direitos previstos no Decreto que criou a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável para os Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT)”, pontua o coordenador da Equipe 10 - Comunidades Tradicionais da Fiscalização Preventiva Integrada (FPI) do São Francisco.

Esta é a segunda vez (a primeira foi seis anos atrás) que a comunidade recebe a visita da Equipe 10, que conta ainda com profissionais da história e arqueologia, entre outros. Logo no primeiro encontro, durante a visita na última quarta-feira (30) no Centro Comunitário Pé de Serra, sede de uma organizada associação de moradores, a questão da origem foi posta em questão. De tanto ouvir falar dessa história de origem, a dona Maria Soares de Oliveira, filha do morador mais antigo do povoado, foi pesquisar nos arquivos e, remexendo numa pasta de um curso que frequentou dez anos atrás, encontrou um texto sem assinatura, impresso num papel e escrito num estilo bastante coloquial, que conta a suposta história do início do povoado. Sem citar a origem holandesa, descreve um senhor de escravos que, por volta de 1800, fugindo da guerra, teria fundado o atual vilarejo.

De nome Arnaldo, o suposto fundador do povoado teria sido morto por envenenamento, numa vingança de um dos seus escravos que o suposto holandês havia torturado. O corpo do senhor de escravos teria sido enterrado numa área repleta de uma erva daninha conhecida por Tingui (uma planta que realmente é tóxica para o gado), e que viria a dar nome à comunidade. Nos relatos colhidos pelos técnicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) - durante os trabalhos da FPI - o surgimento do povoado teria se dado no início do século XIX. Eles também confirmaram os costumes conservadores adotados pela comunidade ao longo do tempo, como o casamento entre os membros da própria família – o casamento entre primos, fato que justificaria a predominância dos sobrenomes Sandes e Oliveira entre os moradores de Tingui e que, segundo o antropólogo do MPF, já caracteriza um costume tradicional.

Encontro com Lampião - Na memória do mais velho dos moradores, Gonçalo Oliveira, entretanto, o que ficou marcado foi a violência da época do cangaço, nos anos 1930, quando o bando de Lampião deu cabo da vida do seu pai e dos dois irmãos mais velhos na frente da casa onde então moravam. "A gente tinha acabado de almoçar e eles chegaram, deram um bocado de aguardente pra minha mãe, pra ela "aguentar o rojão", e levaram a vida deles na bala. Depois deixaram ali mesmo no chão, " relembra o ancião.

O menino de nove anos, na época, é hoje um senhor quase centenário. Aos 96 anos, Gonçalo ainda lembra de terem poupado sua vida e a de um outro irmão, de 14 anos. "Um conhecido chegou dizendo pros cangaceiro (sic) pra deixar o menino vivo, pra trabalhar e ajudar a mãe. E deixaram a gente", completa. O cenário da tragédia é hoje uma tela pintada a óleo por uma artista local, que decora um dos cômodos da casa de sua filha Maria.

A relação da comunidade com a questão da memória também está presente no pequeno museu criado por um dos moradores, conhecido como "Seu Paulo". Instalado numa velha casa de farinha, cujos equipamentos ainda se encontram no local, o museu reúne fotos antigas de moradores da comunidade nascidos na primeira metade do século XX e mesmo no século XIX, porcelanas e garrafas de estilo antigo, artefatos indígenas cerâmicos e de pedra, entre outros.

O povoado é, por si só, histórico, segundo constataram os técnicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), devido à expressiva quantidade de antigos muros de pedra presente nas imediações da comunidade Tingui. Estruturas que, segundo eles, eram comumente utilizadas nos séculos XVIII e XIX para criação de animais e indicam que possivelmente a origem da localidade se relaciona com os antigos currais de bois que caracterizaram a ocupação do Sertão de Alagoas.

E é do povoado localizado aos pés da Serra do Craunã (o primeiro refúgio biológico da Caatinga alagoana) que têm início a movimentada trilha da Pedra Montada: um atrativo turístico que, segundo o presidente da associação local de moradores, Petrúcio Oliveira Sandes, tem trazido preocupação para as cerca de 100 famílias da comunidade. "É um local muito bonito, que dá vista pro Canal do Sertão, dá pra ver (a cidade baiana de) Paulo Afonso do alto, mas é um lugar perigoso. O IMA (Instituto do Meio Ambiente) colocou placa lá, mas às vezes os turistas se perdem, é arriscado se acidentar e ficar sem socorro", afirma o presidente da associação.

Para a equipe da FPI, Petrúcio também revela que o aumento do fluxo de "gente de fora" incomoda a pacata comunidade, bem como a falta de uma estratégia para que a comunidade também se beneficie economicamente com a atividade turística. Como forma de preservar a memória e ao mesmo tempo marcar território, a entrada para a trilha ganhou recentemente uma estátua inspirada na mãe de 'Seu Gonçalo ", que, viúva, teve de criar os filhos sozinha no início do século passado.

Condomínio fechado - Mas se a violência marcou a história de vida do mais antigo ancião do local e deu origem ao nome do povoado, hoje em dia o clima é de sossego. Fora a festa da padroeira, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, sobram poucas opções de lazer no vilarejo. A não ser os três bares onde os homens costumam se reunir. "Aqui é muito sossegado. Nunca teve caso de um furar o outro, nem nada de dar tiro, não. As vezes que tem confusão é por causa de cachaça, mas é gente que vem de fora. Aqui todo mundo se conhece. A gente vive em paz", diz o agricultor José Fernando de Oliveira, 65 anos, enquanto ostenta, na principal rua do povoado, seu chapéu de couro, tipicamente sertanejo, seus olhos azulados e a pele avermelhada do sol.

"Aqui é um condomínio fechado" brinca Moisés Morais Lisboa, cujos sobrenomes denunciam: trata-se de um "forasteiro". A cor da pele, parda, contrasta com a da esposa, Isabela Oliveira, neta de "Seu Gonçalo". Mas o contraste é apenas visual. O casamento dos dois revela que os anos de uma comunidade conservadora e fechada, como a própria Isabela afirma, já passaram. Moisés é de Piranhas, mas passou a viver na comunidade depois do casamento e foi muito bem recebido. Ambos são professores de geografia, mas apenas Moisés - também bastante curioso pela história de Tingui - está em sala de aula, enquanto Isabela trabalha na prefeitura. "Tingui' é uma comunidade tradicional diferente não apenas por ser "branca", mas por conta da capacidade de organização. Até quem mora em outros povoados comenta isso. Como a comunidade ficou muito fechada durante muitos anos, isso acabou unindo mais as pessoas", afirma Isabela.

Uma prova dessa organização é o sistema de comunicação utilizado pela associação para os informes de interesse geral: um sistema de som instalado na sede da associação ligado a um alto-falante na torre da igreja, na praça do povoado. Numa área onde a telefonia móvel é precária (apenas uma operadora funciona), o recurso é simples e eficiente. Mal havia feito um comunicado sobre a documentação necessária para a obtenção de um benefício para os agricultores, Petrúcio é abordado ali mesmo na praça por um morador que queria tirar dúvidas. Mas, além da organização, o povoado tem uma notável articulação política. "Temos uma boa relação com o gestor", afirma Isabela ao se referir ao prefeito local. "E também somos bem prestigiados pelo poder público. Até mesmo na festa da padroeira, a comunidade é consultada para saber que banda (a prefeitura) vai contratar para tocar'",  comenta.

No caso de Tingui, o ditado " a união faz a força" parece ter bastante sentido. "Até moradores de outros povoados fazem questão de entrar na associação daqui porque sabem que as coisas aqui vão pra frente", afirma a servidora pública do município. "A gente só tem medo de Tingui virar uma cidade fantasma porque não tem muita opção de renda para os mais jovens, que estão indo embora, sem perspectiva; além de outras famílias que estão deixando muitas casas vazias", lamenta Isabela. Hoje, a comunidade vive basicamente de agricultura de subsistência, criação de animais (em pequena escala) e artesanato: escultura em madeira, couro, pintura em tela, pano de prato, biscuit, etc.

Durante o encontro com a Equipe de Comunidades Tradicionais e Patrimônio Cultural da FPI, os moradores apontaram a Casa do Mel, um projeto da prefeitura de Água Branca, para potencializar o comércio de mel na região, que vai contemplar também os produtores da comunidade. Além do interesse na reativação de antigas casas de farinha existentes na comunidade, como forma de fortalecer a economia local. O ecoturismo e o turismo cultural também estão no "radar" da associação. Sobretudo depois das descobertas de dois novos sítios arqueológicos na região, apontadas pelos próprios moradores durante a visita da FPI, e confirmada pela arqueóloga do Iphan, Rute Bezerra, integrante da Equipe 10.

Povoamento do Sertão - Nas duas visitas, a FPI recolheu bastante informação, que compõe os relatórios apresentados ao fim dos trabalhos. Informação o suficiente, para que seja possível cogitar uma linha de pesquisa que aponta a explicação do povoamento no Sertão de alagoas a partir dos vestígios históricos encontrados em Tingui. Desde os artefatos líticos, passando pelas construções em pedra, os objetos preservados no museu, os dois mais recentes sítios arqueológicos encontrados na região e, principalmente, o elemento étnico humano. “As especulações sobre a presença de negros, escravizados; os artefatos de pedra, que indicam a presença indígena e a suposta ascendência holandesa dos moradores de Tingui são indícios de  uma história que precisa ser resgatada”, afirma Ivan Farias. “Temos o branco europeu, o índio e o negro, ou seja, são raríssimas as provas dessa reunião viva desses três elementos humanos que povoaram o Brasil”, conclui o antropólogo do MPF.

Ainda vai levar tempo, entretanto, até que a origem precisa da "comunidade branca" possa ser confirmada, pois há relatos de que o patriarca do povoado - aquele certo Senhor Arnaldo - também poderia ter origem baiana, e não europeia. A filha de Gonçalo Oliveira, Isabela, conta que a hipótese de uma origem holandesa começou a ser levantada depois da visita de um projeto intitulado Universidade Solidária (Unisol), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no início dos anos 2000. Mas, até hoje, nenhum documento oficial demonstra a veracidade desse argumento. Apenas as aparências, e a imaginação.

 Por Ascom MPF

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