Em Água Branca FPI descobre comunidade indígena Aldeia Kalankó, que vive sem esgotamento sanitário, água e coleta de lixo
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Imagem Ascom MPE/AL |
“É meio constrangedor, não me sinto bem. Mas a gente já se acostumou…
Quando tem vontade de ir ao banheiro, pega um saquinho, vai lá pra trás
do terreno de casa e faz as nossas necessidades. O pajé já pediu
benfeitorias pra nossa comunidade, só que elas estão custando muito,
nunca chegam. Então, não nos resta muito o que fazer. É ir vivendo do
jeito que dá pra viver”. O desabafo em tom de resignação é de dona
Carmelita da Conceição Santos, índia da Aldeia Kalankó, localizada no
município de Água Branca, alto Sertão de Alagoas. Tendo que sobreviver
também com a falta de saneamento básico, recolhimento de lixo e
fornecimento de água, os moradores do povoado parecem viver à margem da
civilização.
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Dona Carmelita mora numa casa de três cômodos – dois quartos e uma
sala, com outras três pessoas, no povoado indígena Kalankó, comunidade
tradicional que existe há mais de dois séculos, no interior alagoano. Em
tempos modernos, imaginar que uma família inteira vive sem fazer suas
necessidades fisiológicas num vaso sanitário, parece ser bem difícil de
acreditar. “Isso só acontecia em tempos primitivos”, você poderia
pensar. Errado, isso ainda ocorre, sim, é aqui no estado, e na casa de
dona Carmelita e de mais dezenas de pessoas, por exemplo. “Mas eu já nem
penso mais em sair daqui, morei fora e passei por dificuldade
parecida”, contou ela.
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Os moradores do território indígena, que só na década de 80 passaram a
lutar de forma expressiva pelo reconhecimento oficial de sua
indianidade, reclamam que estão no esquecimento, até protestam, mas só
chegam até aí. “É claro que não gosto de viver sem um vaso sanitário
dentro de casa. Pelo dia é pior ainda e eu não me sinto nada bem porque,
como só tenho o quintal para fazer isso e ele é aberto, as outras
pessoas ficam vendo. De noite é menos constrangedor, uma vez que, na
escuridão, ninguém fica nos observando”, disse Marina Maria da Silva,
que nasceu e se criou naquele lugar.
Das 74 famílias Kalankó que moram na comunidade, quase 2/3 delas, 30,
vivem sem esgotamento sanitário. Ao todo, são cerca de 320 aldeados.
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Falta d'água
Além de conviver com a falta de chuva que fez com que os índios
Kalankó perdessem suas plantações de mandioca, feijão, milho e algodão, a
comunidade também se vê obrigada a ficar sem água para beber, tomar
banho e cozinhar. “Não existe uma frequência certa para o carro-pipa vir
abastecer as cisternas. Às vezes, ele vem três vezes na semana. Mas,
ainda assim, continuamos com dificuldade, já que, das 30 existentes no
povoado, apenas 17 recebem água e cada reservatório tem capacidade para
apenas 16 mil litros”, explicou o pajé Antônio Francisco dos Santos.
“Quem tiver R$ 250 para comprar sete mil litros de água que são
vendidos nos carros-pipas particulares, ainda consegue não passar sede.
Mas, já adianto que isso é uma pequena minoria. Infelizmente, desde o
ano passado, não temos roça e, por isso, a maioria de nós sobrevive
apenas do Bolsa Família ou da aposentadoria de um salário mínimo. E como
com fome não dá pra viver, a gente vai resistindo, enfrentando a falta
de água para o consumo humano”, explicou.
Ausência de coleta de lixo
Coleta de lixo é uma outra área deficiente. A Prefeitura de Água
Branca deveria fazer o recolhimento dos resíduos sólidos na aldeia, mas
nunca mandou um caminhão sequer. Já sobre o lixo hospitalar do
Posto-Base, até existe um contrato formalizado com a empresa Serquipe
que, no papel, tem a obrigação de efetuar a coleta. Mas, são os
funcionários da própria unidade de saúde que se dispõem a levar o lixo
para a cidade.
“Resultado? A gente só tem duas alternativas para se livrar do lixo
que produzimos em casa, ou enterramos, ou tocamos fogo nele. Sei que
enterrar não é o melhor caminho porque contamina o solo, né? Mas, às
vezes é o que nos resta a fazer”, lamentou o líder da aldeia.
"Já se passaram seis anos desde a instituição da Política Nacional de
Resíduos Sólidos (PNRS) e, em Alagoas, com exceção de Maceió, nenhum
outro município conseguiu ter o seu próprio aterro sanitário. As
prefeituras alegam que custa caro construir, mas existe a alternativa
dos consórcios. Aqui no estado, existem cinco formados, todavia,
continuamos no aguardo para que sejam operacionalizados. A lei já proíbe
a existência de lixão desde o ano passado e os gestores precisam
entender isso de uma vez por todas. E mais, eles têm também que ter a
consciência que a coleta deve ser feita com regularidade e de forma que
não prejudique a saúde da coletividade. No caso dos índios, a fumaça
provocada pela combustão do lixo pode causar sérios problemas
respiratórios. Já os resíduos enterrados poluem as águas subterrâneas
que, por sua vez, levam essa contaminação para os afluentes do São
Francisco que existem naquela região”, alertou o promotor de Justiça
Alberto Fonseca, um dos coordenadores da FPI do São Francisco da
Tríplice Divisa.
Saúde e educação
Em Alagoas, segundo dados do Ministério da Saúde (MS), cerca de 4,2
mil indígenas foram beneficiados, em 2014, com a construção de cinco
novos Polos-Base de Saúde, implantados por meio da Secretaria Especial
de Saúde Indígena (Sesai). Teriam sido investidos aproximadamente R$ 4,3
milhões na construção das unidades e na compra de equipamentos. Um
desses espaços foi construído na comunidade dos Kalankó.
A unidade de saúde realiza atendimentos médicos em diversas áreas,
como saúde da mulher, da criança, do idoso e imunização. Um médico
cubano é o profissional que gere o serviço do Polo-Base Kalankó.
Gleysa Nunes Vasconcelos é a enfermeira responsável técnica.
Trabalhando lá desde a inauguração, ela garante que a baixa complexidade
tem atendimento de qualidade no posto. Porém, quando os índios precisam
de um tratamento mais sério, que envolve a média e a alta complexidade,
o acesso a exames e procedimentos clínicos se torna bem mais difícil.
"Muitas vezes eles esperam meses para conseguir um atendimento ou fazer
um exame mais detalhado”, reconheceu.
Outra problemática passa pela educação. "As crianças da aldeia até
conseguem vagas nas escolas da rede pública de ensino, porém, como são
colégios do povo branco, nada da sua cultura é ensinada em sala de aula.
Criar uma escola indígena é essencial para que essa etnia possa se
manter e perpetuar os seus costumes”, completou a enfermeira.
“Quando os índios já possuem suas terras reconhecidas, o desafio é
gerir o território, garantindo o seu etnodesenvolvimento, com as devidas
condições para se manter suas tradições e ter acesso à saúde e
educação, por exemplo. Contudo, essa é uma realidade mais presente na
região amazônica. No Nordeste, o dilema maior ainda é a demarcação de
áreas. No caso dos Kalankó, só há pouco tempo eles tiveram o terreno
reconhecido, com 300 hectares. Porém, ainda aguardam pelo processo de
indenização, que tem que ser feito pela Fundação Nacional do Índio
(Funai). E é em função disso que tudo se torna ainda mais difícil de ser
conquistado”, explicou o antropólogo Ivan Farias, do Ministério Público
Federal, e também coordenador da equipe de comunidades tradicionais da
Fiscalização Preventiva Integrada do São Francisco da Tríplice Divisa,
etapa Alagoas.
A FPI
A visita aos Kalankó fez parte dos trabalhos da Fiscalização
Preventiva Integrada do São Francisco da Tríplice Divisa, uma grande
força-tarefa, que envolve 21 instituições, estaduais e federais, em
defesa do Velho Chico, da saúde da população ribeirinha e das
comunidades tradicionais que vivem no entorno do manancial. “Viemos
fazer um levantamento das condições socioambientais dessas comunidades
que têm ligação com o Rio São Francisco, na perspectiva de conhecê-las
para atuar na defesa do Velho Chico e dos seus povos, com uma maior
eficácia”, acrescentou o antropólogo do MPF em Alagoas.
Os Kalankó
Em Alagoas, são aproximadamente 320 índios na aldeia Kalankó,
divididos em três núcleos: Januária, Gregório e Lageiro do Couro. E
diante de todas as dificuldades encontradas para se manter um povo
indígena, os moradores da comunidade resistem, eles não querem se
esquecer de suas origens.
Apesar de não terem um local adequado para praticar seus rituais,
periodicamente, eles se reúnem nas matas para dançar o 'poró', ritual
sagrado de celebração criado pela própria tribo.
"A colonização do Nordeste se serviu do Rio São Francisco para chegar
ao interior da região e os grupos indígenas daqui foram os que mais
sofreram, tanto pela violência das armas, quanto pelas doenças trazidas.
Não à toa os índios do Sertão são a mais viva expressão da resistência
do povo nordestino. Essa bravura é mais uma herança deles aos
brasileiros. São eles que decidem sobre a manutenção ou não dos seus
valores”, esclareceu Ivan Farias.
Por Ascom MPE/AL
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