Ilha do Ferro em Pão de Açúcar é espelho da arte ribeirinha e potencializa a criatividade de artesãos alagoanos
Espaço encravado em pleno sertão alagoano é sinônimo também de fertilidade cultural que encanta turistas
Ilha do Ferro é espaço de criatividade e fertilidade cultural, inspirada nas paisagens e características locais que se concentram nas mãos e no imaginário dos artistas do lugar Fotos: Itawi Albuquerque |
Jaciobá, mais conhecido como Pão de Açúcar. O nome concedido
inicialmente ao município ribeirinho de Alagoas, localizado a 238
quilômetros da capital Maceió, faz alusão a uma das visões mais
encantadoras que se pode contemplar no sofrido, porém belo, sertão
alagoano. A palavra de origem Tupi - escolhida pelos índios Urumaris,
antigos habitantes daquela região - significa “espelho da lua”, em
referência ao reflexo do satélite nas águas do Rio São Francisco.
Com a colonização portuguesa, a mudança na linguagem dos povos
consistia em uma das principais estratégias de domínio das sociedades
europeias, transformando Espelho da Lua em Pão de Açúcar devido à
presença de um morro na paisagem, cujo aspecto assemelha-se a uma forma
utilizada no processo de produção do açúcar na época dos antigos
engenhos.
Hoje, a sensibilidade com que os primeiros habitantes enxergavam seu
espaço e a relação que estabeleciam com o Velho Chico parece não ter se
perdido no sereno povoado Ilha do Ferro. Distante dos grandes centros, a
Ilha do Ferro é espaço de criatividade e fertilidade cultural,
inspirada nas paisagens e características locais que se concentram nas
mãos e no imaginário dos artistas que por ali residem.
O acesso pela estrada de barro indica, inicialmente, a simplicidade
do lugar. Em ruas estreitas e acolhedoras vão surgindo indícios de uma
vida discreta, sinalizada pelas conversas à porta de casa, os vizinhos
que se conhecem por apelidos, o bordado feito na calçada, as lavadeiras
em seu ofício às margens do São Francisco e, claro, o artesanato das
esculturas em madeira.
Como saber popular repassado de geração em geração, na Ilha do Ferro a
matéria-prima morta descartada na natureza vira instrumento e
inspiração, dando forma às peças de decoração e utensílios como
cadeiras, objetos de arte, mesas, bancos e o que mais o impulso criativo
de cada artesão permitir.
Pioneiro nessa produção, o mestre Fernando Rodrigues, que faleceu há
oito anos, deixou um legado com nomes fortes de talento e criatividade.
Aproximadamente 25 homens trabalham com o artesanato em madeira
atualmente. Dentre eles, Valmir Lessa - casado com a filha de Fernando,
também artesã, Rejânia Rodrigues - e o Mestre Aberaldo, conhecidos
nacionalmente pelo olhar original concedido às produções.
Artesão há mais de 15 anos, Valmir Lessa conta que sua primeira peça é fruto de uma pequena “rixa” existente entre sogro e genro. |
“Eu comecei quando ele me desafiou aqui. Eu trabalhava na roça e de
noite pescava, aí ele estava aqui trabalhando e eu disse que sabia fazer
uma cadeira também. Que era fácil. Ele disse que eu não sabia de nada.
Duvidava. Eu disse: “Então me dê a madeira e as ferramentas”. Nesse dia
eu fiz uma cadeira linda para minha filha. A partir daí, fiquei
trabalhando com ele e não parei mais”, conta Valmir.
Procurado por turistas de todas as partes do Brasil, Valmir afirma
que se tornou conhecido aos poucos. Para chegar ao produto final que
hoje decora espaços em diversos lugares do país, a madeira passa pelo
olhar apurado do artesão em um processo que começa ainda na mata. De
acordo com Valmir, é preciso verificar se existem espinhos e se o galho e
o tronco “dão forma”, antes de recolher a matéria-prima.
Apesar do olhar atento e do notável dom artístico, Valmir Lessa
encara com naturalidade tamanho talento. “A maioria das coisas já vem
pronta. Já são feitas pela natureza. Tem uma cadeira aqui que eu só
coloquei o pé. O povo diz que eu sou bom, mas eu olho a madeira morta e
digo: Isso aqui vai dá um pássaro. Ou, isso aqui dá uma cadeira. Enxergo
o que já existe ali. O dom é só de conseguir ver o que já vem pronto”.
Bebendo na mesma fonte, os artesãos buscam a originalidade em
pequenos diferenciais. Se a especialidade de Valmir são as cadeiras,
Mestre Aberaldo tem como principal produção os banquinhos e os famosos
bonecos de madeira. Pássaros também estão entre os preferidos do
artesão.
Toda diversidade cultural e estética da Ilha do Ferro foi capturada
pelos olhos do designer alagoano Rodrigo Ambrósio, que, através do Grupo
Design Armorial, executou o projeto Afluentes, em maio deste ano. O
projeto, que teve o apoio da Universidade Estadual de Alagoas (Uneal) e
da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo (Sedetur),
reinterpretou a produção artesanal local por meio da intervenção do
design, produzindo peças que registram o espírito estético da região. O
resultado será exposto em agosto na Galeria Legado Arte, durante a
Design Weekend, em São Paulo.
A ação contou, ainda, com a participação dos designers Rodrigo Almeida, Dalton Costa e Maria Amélia Vieira, além do pesquisador Jairo da Costa e da jornalista da revista Casa Vogue Beta Germano. |
“No alto da Boca do Vento, eu e Valmir trabalhamos em constante
parceria, auxiliados também por quem chegava, como Vandinho e seu filho
Neto. De desafio em desafio criamos e produzimos quatro peças, elos de
arte e design que comunicam a memória do lugar, são elas: Guardião,
banco em madeira Craibeira; Carranca, um vaso da mesma madeira; Calango;
banco em madeira Pereiro e Moxotó, uma luminária”, explica Rodrigo
Ambrósio.
“Boa noitinha”
O fazer artístico da ilha não se limita ao artesanato em madeira. É
por lá, também, que nasce o singelo bordado boa-noite. Para regularizar a
situação das artesãs, em 1999 foi criada a Cooperativa Artesãs da Ilha
do Ferro. A prática é considerada ofício comum entre a maioria das
mulheres da região, que de tão familiarizadas demonstram intimidade
quando falam no assunto. Rejânia Rodrigues, 50 anos e artesã desde
criança, chama carinhosamente o bordado de “boa-noitinha”. Nesse
sentido, mais uma vez o espaço serve de inspiração. O bordado é
inspirado em uma flor típica da região que carrega o mesmo nome.
Simpática e de fala mansa, apenas uma possibilidade preocupa Dona
Rejânia: o futuro do Rio São Francisco. “É muito forte isso de retratar o
nosso lugar. Fico pensando então como vai ser se o Velho Chico morrer.
Diziam que o Rio São Francisco ia virar um poço, e agora acho que de
fato vai virar mesmo. Quem sabe nossas futuras gerações, os meus
tataranetos, não vão alcançar isso? Eu faço economia de água, faço
economia de energia, tudo para ver se a situação não piora. Acho isso
aqui lindo. Vai ser uma pena se acontecer.
Apesar das dificuldades, a Ilha do Ferro é cenário de uma vida
tranquila e regada a pequenas alegrias diárias. O sentimento de
pertencimento e o desejo que se ouve entre os moradores da Ilha do Ferro
é quase que uníssono: Aqui é meu lugar. Quero viver e morrer aqui.
“Através do trabalho da Cooperativa já passei por tantos lugares. Já
fui até para fora do Brasil. Mas se me perguntarem onde eu quero morar,
vou dizer: Ilha do Ferro. Quem não quer uma vida de princesa como essa?
Eu estou aqui, olhando a beleza do Rio São Francisco, fazendo meu
bordado, meu marido fazendo nosso trabalho, nós pescando, com saúde,
tenho meu pão de cada dia. O que eu quero mais na vida?”, conta, aos
risos, Dona Rejânia.
Por Blog Adalberto Gomes Noticias com Agência Alagoas
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