Alagoana Nise da Silveira: a mulher que revolucionou o tratamento da loucura no Brasil
Especialistas falam sobre a influência da psiquiatra alagoana na inclusão de pessoas com transtornos mentais
Alagoana Nise da Silveira foi uma das primeiras a falar em desinstitucionalização dos manicômios no Brasil além de publicar dez livros e muito contribuir para os estudos da psiquiatria Carla Cleto e Olival Santos |
Nascida
em Maceió, no dia 15 de fevereiro de 1905, Nise da Silveira, psiquiatra
alagoana e pioneira da Terapia Ocupacional no Brasil, deixou Alagoas
com apenas 16 anos, para cursar a Faculdade de Medicina na Bahia, sendo a
única mulher numa turma de 157 alunos. Em 1926, ela conclui o curso,
apresentando o estudo sobre Ensaio sobre a criminalidade da mulher no
Brasil, e se casou com um amigo de sala, o médico sanitarista Mario
Magalhães. No ano seguinte, o casal se mudou para o Rio de Janeiro, onde
ela começou a atuar como médica, além de escrever uma coluna sobre
medicina para o Jornal A Manhã.
No
entanto, foi só em 1933, quando passou em um concurso público, que sua
vida profissional se cruzou com a psiquiatria para não mais se
dissociarem. Em 1934, após ser denunciada por uma enfermeira que mostrou
à polícia política de Getúlio Vargas, liderada então pelo feroz Filinto
Müller, os livros marxistas "subversivos" que ela guardava na sua
estante, a psiquiatra alagoana passou 15 meses no presídio Frei Caneca,
onde sofreu diversos tipos tortura e, quando liberada, em 1936, foi
afastada pelo serviço público e viveu na semiclandestinidade por oito
anos ao lado do marido devido ao risco de ser novamente presa.
A
experiência teria, no futuro, influência determinante na condução de
suas técnicas de tratamento, que evitavam, ao máximo, o enclausuramento
das pessoas com transtornos mentais.
Uma psiquiatra rebelde
Contrária
a práticas como o eletrochoque, a lobotomia, o choque de insulina e o
de cariazol, seguiu o caminho da Terapêutica Ocupacional e se propôs a
fortalecer esse método transformando-o em um campo de pesquisa. Os
valores, como o respeito aos pacientes, o afeto, a liberdade, a
criatividade, contrariavam a concepção de um hospital psiquiátrico na
época.
“Nise
foi um ícone para a psiquiatria brasileira e mundial. Ela chutou muitas
portas para impor sua visão humanista nos hospícios brasileiros.
Através da Terapia Ocupacional ela encontrou uma forma de tratamento
para os portadores de transtornos mentais, onde resgatou a autonomia, a
criatividade e a capacidade de eles se comunicarem uns com os outros.
Além de incluir a dimensão do bem-estar num conceito maior, na qual a
sociedade entendesse a doença e passasse a tratá-los, sobretudo, com
respeito e dignidade que prevalecem em qualquer situação”, explica
Rosimeire Rodrigues Cavalcanti, psiquiatra e secretária executiva de
Ações de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde (Sesau).
Em
1944, Nise foi reintegrada ao serviço público, sendo lotado no Hospital
Pedro II, antigo Centro Psiquiátrico Nacional do Rio de Janeiro, no
Engenho de Dentro, um dos maiores hospícios do Brasil, criado no século
19. Nise sentia-se inapta para exercer a tarefa de psiquiatria, pois,
era ferozmente contra os métodos tradicionais da época que considerava
extremamente brutais e recordavam-lhe as torturas do Estado Novo
aplicada aos dissidentes políticos e que ela conhecia bem. Por causa de
sua discordância com as técnicas então usadas e celebradas, foi
perseguida pelos médicos do hospital e transferida para o Setor de
Terapia Ocupacional do Pedro II, espaço de menor prestígio na
instituição.
Até
então, esse tipo de terapia consistia, praticamente, em apenas usar os
pacientes dos hospitais psiquiátricos como serviçais. Os pacientes
psiquiátricos eram usados para varrer, limpar vasos sanitários e servir
outros doentes.
O afeto catalisador
Além
dos ateliês de artes da STOR, Nise da Silveira também introduziu cães e
gatos na vida de seus pacientes, para que se apegassem a eles, criando
um elo com o mundo real. Para ela, os resultados terapêuticos das
relações afetivas entre o animal e o doente eram excelentes. Ela dizia
que os gatos são “excelentes companheiros de estudos, amam o silêncio e
cultivam a concentração” e admirava a independência dos felinos.
O encontro com Jung
De
acordo com Rosimeire Rodrigues, na Psicologia Analítica Junguiana, a
psiquiatra alagoana encontrou não somente a explicação que buscava para a
iconografia dos seus pacientes esquizofrênicos, como também a base
teórica que dava corpo à sua experiência pioneira com a terapia
ocupacional.
“Nise
começou a observá-lo, pois enxergava em Jung muitos instrumentos para
trabalhar fatores que, direta ou indiretamente, resultavam numa
ampliação do mundo esquizofrênico, permitindo, pela primeira vez,
através do contato com os animais, da espontaneidade, do fazer e da
metalinguagem a possibilidade de acessar o ser recolhido em seu mundo
inconsciente e infundir nele forças curativas mediadas por símbolos e
afetos”, explica a secretária executiva.
Mais
que estabelecer uma relação entre arte e loucura, os ateliês de Nise
foram capazes de revelar artistas plásticos talentosos dentre seus
pacientes, que chamaram a atenção não somente de pesquisadores de saúde
mental e médicos, mas também de críticos de arte.
O legado intelectual
O
Museu de Imagens do Inconsciente possui, atualmente, mais de 360 mil
obras, e já participou de mais de 10 exposições nacionais e
internacionais. Suas principais coleções foram tombadas pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e o acervo pessoal de Nise
da Silveira é tombado como Memória do Mundo da Unesco.
Outro
grande feito de Nise foi a fundação do primeiro serviço de egressos
psicóticos, a Casa das Palmeiras, aberta em 1956. “De certo, Nise foi
uma das pioneiras de ideias e ações que compuseram a Reforma
Psiquiátrica brasileira”, afirma Claudete Lins, responsável Técnica pela
Reabilitação Psicossocial da Sesau.
Segundo
ela, Nise afirmava que o hospital psiquiátrico colaborava com a doença e
acreditava que caberia à terapia ocupacional parte importante na
mudança desse ambiente. “O que cura não é o remédio, mas o afeto. O que
possibilita essa transferência de caráter prático entre mim e o outro é a
ponte afetiva com o mundo, fazendo com que o paciente psiquiátrico saia
de uma condição patológica e renasça para inúmeras possibilidades e
oportunidades”, diz. Nise foi, ainda, membro fundadora da Sociedade
Internacional de Psicopatologia da Expressão, com sede em Paris.
Para
Claudete Lins, “o maior legado de Nise foi introduzir o afeto e a
expressividade como elementos transformadores no tratamento do paciente
psiquiátrico. “Em outras palavras, na visão dela, o esquizofrênico não
era um ser diferente, mas um frágil gérmen de vida que procura em vão
romper a densa casca que o impede de ver a luz do mundo”, destaca.
“Seria
tão bom se a saúde mental fosse valorizada, porque sabemos que ainda
existe muito preconceito e pouca valorização na reconstrução da vida
desses seres humanos que estão em sofrimento. Acredito que a obra de
Nise da Silveira, de valor incontestável, deve, conforme o próprio
desejo manifestado por ela, ser lida, relida e aperfeiçoada, dentro do
possível. Ela foi uma figura singular”, pontuou.
Nise
da Silveira, uma das primeiras a falar em desinstitucionalização dos
manicômios no Brasil, publicou dez livros e escreveu uma série de
artigos científicos que muito contribuíram para os estudos da
psiquiatria. Morreu, aos 94 anos de idade, no dia 30 de outubro de 1999,
vítima de insuficiência respiratória aguda.
Por Redação Blog Adalberto Gomes Notícias com Agência Alagoas
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