Conheça a história de uma criança pernambucana de 9 anos que foi encarcerada pela própria família durante dois terços de sua vida
Menino de Trindade é resgatado após passar anos confinado pela família em quarto
Após passar parte da vida confinado pela família em quarto, garoto sertanejo foi, finalmente, resgatado pelo poder público
Após passar parte da vida confinado pela família em quarto, garoto sertanejo foi, finalmente, resgatado pelo poder público
Menino de Trindade é resgatado após passar anos confinado pela família em quarto |
Os olhos travessos do menino passeiam pela enfermaria até encontrarem
algum detalhe capaz de prendê-los, quando cessam os passos apressados de
quem tem um mundo a conhecer. Aos nove anos de vida, nesta
quinta-feira, 24 de março de 2016, experimentou seu primeiro dia não
apenas no Recife, mas fora do quarto onde passou quase toda a vida
encarcerado pela própria família, do lado de fora de uma humilde casa
localizada na zona rural de Trindade, no Sertão de Pernambuco. Sob
medida protetiva, foi encaminhado à Casa de Acolhimento Rodolfo
Aureliano (Craur), no Engenho do Meio, depois de três anos de ter sua
história conhecida pelas autoridades.
O caso foi notificado desde o ano de 2013, quando vizinhos denunciaram o
cárcere privado do garoto ao conselho tutelar, que teria sido motivado
por traços de retardo mental da criança. “A mãe, o tio, os avós e os
dois irmãos mais novos vivem juntos, mas ele foi separado. As outras
crianças falam normalmente – ao contrário dele, que não diz uma palavra –
e frequentam a escola”, explica o presidente do Conselho Tutelar da
cidade, Gilvan Andrade. Desde o primeiro contato, foram feitas visitas
esporádicas à casa. “Chegávamos lá, o quarto estava todo melado de fezes
do próprio menino, que também as comia. Vivia sujo, sozinho e nu,
porque nunca foi acostumado a usar roupas, além de raramente ser
banhado. Quando era colocada a comida em seu quarto, ele a jogava no
chão para comer com as mãos”, lembra.
De acordo com Andrade, até 2014, várias unidades de acolhimento próximas
a Trindade foram procuradas para recebê-lo, sem sucesso, até que foi
elaborado um pedido de intervenção do Ministério Público de Pernambuco
(MPPE). “Fomos a municípios como Petrolina, Garanhuns, Serra Talhada e
Juazeiro do Norte (no Ceará), mas ninguém o aceitou, por causa de sua
condição”. A promotora de justiça envolvida na transferência do garoto
ao Recife, Danielle Belgo de Freitas, preferiu não se pronunciar sobre o
assunto para esclarecer os trâmites que só permitiram ao órgão pedir a
remoção do garoto do núcleo familiar apenas em 2016, uma vez que tira
férias do promotor Diógenes Moreira, titular de Trindade.
Recomeço
Desacostumado com o contato humano, o dia do menino foi de adaptação. É
preciso adquirir intimidade com cores, formas, sons, cheiros e até
cumprimentos, como abraços. Para a psicóloga do Craur, Tereza Gurgel, o
ideal seria que a situação não precisasse ter chegado ao ponto de o
garoto precisar ser atendido pela casa. “Mesmo no mundinho dele, lá
dentro, o abandono é sentido. Ele veio muito debilitado. Esse menino
precisaria ter convivido com crianças sem restrições e, aqui, todos são
portadores de limitações. Quando dei-lhe um carro de brinquedo, ele
pegou e jogou no chão, como se não reconhecesse aquilo”, comenta.
A coordenadora da gerência de proteção social especial de alta
complexidade, Viviane Wanderley, acrescenta: “Há uma lei do Conanda/CNAS
que determina não existir serviço específico para pessoas com
deficiência. Elas precisam conviver com pessoas sem deficiência. Os
abrigos não poderiam tê-lo recusado por esse motivo”. No Craur, o garoto
conviverá com mais 40 acolhidos, dentre os quais estão apenas sete
menores de 18 anos.
Segundo a psicóloga, a falta de estímulo certamente agravou o quadro de
retardo do garoto, destacando as barreiras da brincadeira e da fala no
aprendizado. “Temos uma referência familiar e vamos resgatá-la. Fui
informada que a mãe fazia questão de dormir com ele no recinto em que o
isolou. É preciso entender esta mulher, quais motivos a levaram
prendê-lo em um quarto. Muitas vezes é por ignorância, por não saber
lidar com pessoas com necessidades especiais”, explica.
A coordenadora técnica do Craur Lourdes Sousa assegura que o novo
morador da casa foi recepcionado por uma equipe técnica composta por,
além da psicóloga, enfermeiro, fonoaudiólogo, dentista, médica e
fisioterapeuta. “Além disso, todos os nossos acolhidos participam de
atividades de desenvolvimento que envolvem música, pintura e interações.
Aqui, cada momento do acolhido é pedagógico. Trabalhamos na superação
das limitações e conseguimos obter bons resultados”.
A primeira trindade: infância, solidão e invisibilidade
Pouco depois de nascer, o menino de Trindade foi entregue pela mãe à avó
paterna. Em alguns meses, ela percebeu as limitações das faculdades
mentais da criança e solicitou o apoio do Conselho Tutelar do município,
no sentido de obter o benefício de auxílio-doença dela. Foi antes de
completar três anos que a relação do menino com o quarto teve início,
quando voltou aos cuidados de mãe, avós e tios maternos.
Para recebê-lo, não foi arrumado um quarto, mas erguido um recinto ao
lado da casa. Um cômodo, trancado por um portão de ferro, cujo interior
se fez o mundo do menino. Após ser denunciado às autoridades locais, o
local chegou a ser ampliado pela Secretaria de Ação Social de Trindade,
que pretendia, além de melhorar a qualidade de vida do garoto,
incentivar o convívio da mãe com ele. O quarto ganhou luz elétrica,
cerâmica no chão, paredes limpas e um novo cômodo. Continuou, contudo,
absolutamente vazio. “Lá não tem móveis ou roupas dele. A mulher, às
vezes, dormia com o menino”, diz Gilvan Andrade, conselheiro tutelar.
Sem dispor de brinquedos ou pertences, era com as próprias fezes que
coloria as paredes sujas, o corpo nu e subvertia a dureza do chão. Do
resto de mundo, tinha apenas a companhia de uma janela, a oferecer um
pequeno recorte de céu, que poderia não consolar vazios, mas se fazia
prenúncio da imensidão.
Por Marilia Parente/ Diário de Pernambuco
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